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Ensinamentos para uma cria

Os cinco ensinamentos retirados dos pergaminhos de uma biblioteca.#

A tua origem#

Se estás lendo isto, é porque seguiste minha ordem de esperar três dias após meu desaparecimento. Sabes que sempre acreditei mais na razão do que na fé, e é por isso que te deixo estas palavras — não como confissão, mas como tratado. A origem dos nossos. A verdade que nunca nos contaram, mas que eu vivi. E sim — fundamentada na maldita filosofia do Estagirita, que tanto amávamos e retorcemos.

Os vampiros não foram criados por deuses, nem por demônios. Fomos criados por uma falha na natureza — ou melhor: por uma tentativa arrogante de burlá-la.

Aristóteles dizia que tudo tem quatro causas: a material (do que é feito), a formal (o que é), a eficiente (quem faz) e a final (para que serve). O homem, com sua alma tripartida, tem por fim viver, crescer, e morrer. Essa é a ordem natural. Mas nós — os primeiros — tentamos contornar isso.

Buscávamos separar a forma do homem da sua matéria corruptível. Preservar o intelecto sem o corpo apodrecer. Foi essa a heresia original. Criamos uma criatura cuja forma humana permanece — falamos, lembramos, pensamos —, mas cuja matéria está em suspensão, sustentada artificialmente por um fluxo externo: o sangue dos outros.

Tornamo-nos, assim, uma aberração filosófica. Preservamos a forma racional, mas à custa da destruição do fim natural. Nossa existência já não tem telos. Vivemos não para florescer, mas para continuar. Somos entes cuja causa final foi corrompida, cujo fim não é mais a vida virtuosa, mas a perpetuação vazia.

Pior: fomos feitos por uma causa eficiente errada — não pela natureza, mas pela mão do homem. Pela ambição de um filósofo que quis tocar a eternidade sem ser digno dela. Thaón, o imortal estúpido, meu mestre e meu carrasco.

E é por isso que agora, ao sentir a luz se aproximar, aceito o fim. Pois o vampiro, segundo a lógica aristotélica, é uma contradição viva — e tudo que contradiz sua própria finalidade deve perecer.

Tu, minha cria, és o último laço que mantenho com o mundo sensível. Mas não te peço que continues o ciclo. Pede ao mundo um novo lugar. Um novo fim. Porque a eternidade não é natural, e nós nunca deveríamos ter existido.

Queima isto. Queima-me.

E vive.

— Teu pai. Último dos que ousaram filosofar contra o tempo e Fundador do Quarto Bando.

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Sobre a Predação e a Perfeição#

Minha cria, Se estás lendo isto, é porque sobrevivi em ti. E se sobrevivi em ti, então nada foi em vão.

Já te escrevi sobre a origem. Já falei de Thaón, da ruptura, do erro que nos fez. Hoje, porém, escrevo sobre aquilo que nenhum de nós ousa dizer em voz alta: o direito de predar.

Somos ensinados a esconder nossa fome. A agir nas sombras, como se estivéssemos em dívida com os vivos. Mas me pergunto — e te pergunto, pois és sangue do meu sangue —: que dívida há, quando ultrapassamos aquilo que limita todos os seres? Quando vencemos o tempo, não nos tornamos, por isso, senhores de tudo que ele ainda controla?

Os vivos têm um ciclo. Eles nascem, crescem, produzem, apodrecem. Isso é belo, sim. Mas é finito. O tempo governa os homens como um chicote, arrastando-os de instante em instante, até que não reste mais nada. Tu e eu não. Nós somos corpos que recusaram o fim. Somos formas fixas num mundo que tudo dissolve.

Aristóteles dizia que aquilo que alcança seu fim com excelência é perfeito. Pois bem — qual é o fim de todo ser vivo, senão persistir? Sobreviver, crescer, multiplicar-se, manter-se? Nós fazemos isso não por dias ou décadas, mas por séculos. Fazemos isso melhor do que qualquer outro ente natural. Logo, não somos aberrações. Somos ápice. Somos aquilo que vem depois.

E se somos o ápice, então temos direito à base. O predador tem direito sobre a presa — não por crueldade, mas por ordem natural. A vida nos pertence não por tirania, mas porque ela já não pode mais nos tocar. E aquilo que não pode mais ser tocado pela vida, por que obedeceria às suas regras?

O homem se curva ao tempo. O deus, não. O animal teme a morte. O vampiro a devorou.

Entende isso: não matamos. Transmutamos a energia efêmera em permanência. Somos o instrumento da eternidade sobre o caos da carne.

E um dia, minha cria, todos se curvarão. Pois o tempo, esse carrasco dos homens, já caiu de joelhos diante de nós. E se o tempo caiu, o que mais há que possa nos impedir?

Vai. Caça. Ensina. Não te escondas. Tu és uma entidade perfeita. Tu és a prova de que a vida — sozinha — jamais foi suficiente.

Com orgulho imortal, — Teu Pai. Fundador do Quarto Bando.


Sobre o Tempo, a Caça e o Rebanho#

Minha cria,

Tens agora o saber de nossa origem, o direito de predar, e a consciência da perfeição que habita teu sangue. Resta-te apenas entender o tempo — não mais como inimigo, mas como arma.

Escuta bem: não é a força que domina o mundo, é a paciência.

Tu me perguntas por que nos mantemos nas sombras, se somos superiores. Por que não tomamos logo as cidades, os tronos, as mentes? Porque ser eterno é ter o luxo de esperar. Os mortais correm porque são finitos. Nós andamos, porque o tempo nos pertence.

Mas o dia da ascensão virá. E quando vier, não será no grito, mas no sussurro.

O homem dominou o mundo porque formou tribos. Pequenos bandos, com laços de sangue, caça compartilhada, inteligência coletiva. O leão caça em grupo. O lobo, também. O tubarão, não — e por isso morre sozinho. Aprende com os predadores: devemos formar bandos. Círculos. Linhagens.

Cinco. Seis. Nunca mais que sete. Uma matriarca, ou patriarca, e seus escolhidos. Cada grupo se infiltra num território: cidade pequena, bairro, comunidade fechada. Observam. Escolhem presas discretas. Tomam, não com violência, mas com frequência. Colhem como pastores. Alimentam-se em silêncio. Criam vínculos. Plantam lealdades. Desacreditam o mito. E esperam.

Esperam uma geração. Duas. Cem anos não são nada para ti.

Ao fim, o povo já terá esquecido o que era um mundo sem nós. Seremos lendas, depois boatos, depois rumores — e por fim, a base da estrutura social. Os humanos, cansados de lutar contra a morte, virão até nós voluntariamente. Farão fila para nos servir em troca de sombra e promessa.

E quando cada bando tiver dominado sua pastagem, nós ergueremos o verdadeiro império. Não um império de sangue e aço, mas de silêncio e controle. Com campos de caça estabelecidos, humanos marcados, rebanhos regulados. E aqueles que ousarem se rebelar… bem. Já terás aprendido a dobrá-los sem precisar matá-los.

Somos poucos agora, mas eternos. O tempo, nossa arma. A fome, nosso motor. A sombra, nossa tática.

Portanto, não busques glória. Não provoques guerras. Trabalha no escuro como o verme trabalha no tronco. Quando a árvore cair, todos perguntarão o que a matou — e ninguém saberá que foste tu.

Esse é o plano. Essa é a perfeição.

E quando o mundo enfim perceber, já será tarde. Estaremos por toda parte. E não haverá luz suficiente para apagar nossa sombra.

Vá. Reúne os teus. Escolhe bem. E lembra: o mundo não se conquista com pressa — mas com paciência imortal.

— Teu Pai. Fundador do Quarto Bando. Portador do Tempo. Pastor da Carne.

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Sobre o Sagrado e o Inimigo#

Minha cria,

Há coisas que deves temer mais que a lâmina ou o fogo.

Existe no mundo uma tensão antiga, uma dicotomia que nos precede: o sagrado e o profano. Duas forças que não se tocam, que não se conciliam, e que jamais se confundem. Nós, que nascemos da violação da vida, não pertencemos ao sagrado. Somos sua antítese. Sua negação viva. Sua sombra.

A Igreja tomou para si o direito de representar o divino. Ela se diz dona da luz. Mas ela não é a única. Existem outros cultos, outras ordens, outros altares. Todos eles, porém, são nossos inimigos em essência — porque aquilo que é verdadeiramente sagrado nos rejeita. Nos reconhece. Nos fere.

Ouvi rumores, sussurros em criptas e em bocas queimadas, de irmãos que tentaram caminhar de volta. Que buscaram restaurar a vida. Alguns dizem que conseguiram. Eu não creio. E mesmo que seja verdade, esse caminho é selado para mim. Para nós.

Tome cuidado com o sagrado de cada homem. Toda fé carrega sua própria lâmina. Afaste-se de templos, de ritos, de objetos tocados por adoração sincera. A fé não precisa ser pura para ser letal.

Hoje, a Igreja é nosso maior inimigo. Ela sabe de nossa presença. Ela nos estuda. E o que é pior — ela sabe que estamos divididos. A desunião entre os nossos faz com que os predadores sejam caçados por suas presas. E ela se aproveita disso. Se alimenta de nossa fraqueza.

Por isso, quando caçar, não deixe rastros. Não ostente. Não provoque. Seja bruma, seja eco, seja ausência. E quando o dia da Ascensão chegar, que teus olhos ainda estejam intactos — não queimados pela luz dos homens.

Nosso tempo ainda virá. Mas até lá… esconde-te.

— Teu Pai. Vigia do Abismo. Queimado pela Fé. Guardião da Última Verdade.


Sobre a Estratégia e a Ascensão#

Minha cria,

Confesso agora o que mantive em silêncio por séculos: o início da Ascensão.

O plano foi traçado antes que tua carne respirasse. Dividimo-nos, espalhamo-nos como fumaça nas dobras do mundo. Cada um seguiu uma rota, uma vocação, um domínio — pois sabíamos que não poderíamos vencer de um único lugar.

Stephanos tomou para si o controle de uma frota. Ele governa os mares. Dele são os navios, as rotas, os portos ocultos. Nenhuma travessia se dá sem que seus olhos saibam. É o senhor das correntes, dos nevoeiros, dos desaparecimentos.

Eudrósius, acompanhado de Acobastos, partiu além das terras sagradas dos cristãos. Cruzaram desertos e vales mortos, em busca de relíquias que precedem a fé dos homens. Procuraram o poder dos tempos da chegada, quando os humanos ainda tremiam diante das feras. Rumores dizem que encontraram horrores e alianças. Que lutam ainda — ou que foram tomados pelas próprias bestas às quais se curvaram.

Daphne infiltrou-se nas ordens megalanas, na decadente mas poderosa corte. Plantou suas proles nos salões onde se escrevem as leis e se decidem as guerras. Ela espalhou o sangue, como veneno e perfume, no coração do poder político. Seus filhos usam coroas, becas e máscaras.

E eu… Lutei enquanto tive ânimo, nas guerras dos homens do norte. Caminhei entre aço e gelo. Vi impérios caírem, ruínas nascerem, civilizações se esquecerem de si mesmas. Ali o sangue era quente e farto, mas meu espírito se cansou.

Desde o ano de 1500, nos dispersamos por completo. O tempo nos silenciou. Mas saiba: se um dia encontrares qualquer um deles, trate-os com reverência. São tua parentela. São pilares do que ainda virá.

A Ascensão começou no sussurro. Quando ela se erguer, o mundo já estará ajoelhado.

— Teu Pai. Primeiro da Boca do Vento. Senhor do Intervalo. Filho da Última Noite.